Mineradora diz para investidores que prioriza reparação, mas não reconhece parte dos atingidos do crime de Brumadinho e tentou cortar pagamento emergencial para 7 mil pessoas em Mariana, em julho
Após lucro acumulado de mais de R$ 6,2 bilhões no primeiro semestre de 2020, a Vale anunciou, nesta quarta-feira (29/07), que vai voltar a pagar dividendos para seus acionistas. Já em agosto, os investidores receberão R$ 7,25 bilhões com o pagamento de juros sobre o capital próprio aprovado anteriormente pela companhia.
O pagamento de lucros para acionistas havia sido suspenso em janeiro de 2019, três dias após o rompimento da barragem de rejeitos da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho.
Em relatório financeiro que acompanha o anúncio feito nesta quarta, a mineradora afirma que os investidores receberão dividendos dos lucros de 2020 em setembro. “A Vale avalia que o momento mais crítico foi ultrapassado e decidiu retomar a sua Política de Remuneração aos Acionistas, a qual requer que os dividendos mínimos calculados com base nos resultados do 1S20 [primeiro semestre de 2020] sejam pagos em setembro”, declarou a companhia no comunicado.
O anúncio revela contradições da empresa. Já se passaram 18 meses desde o derramamento de lama da barragem de Brumadinho no Rio Paraopeba, mas várias comunidades que tiveram seus direitos violados ainda não foram reconhecidas como atingidas pela Vale. Em muitas delas, as pessoas nem recebem o pagamento emergencial, que é só o primeiro passo para a reparação integral. É o caso dos moradores da área 5, que contempla os municípios de Felixlândia, Três Marias, Abaeté, Morada Nova De Minas, Paineiras, São Gonçalo do Abaeté e Biquinhas. Além disso, no início de julho, a Vale entrou com recurso para questionar os planos de trabalhos que as Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) construíram junto às comunidades atingidas.
No caso do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, já se passaram cinco anos e milhares de famílias também não recebem o auxílio financeiro emergencial. No início deste mês, a Renova tentou cortar o pagamento para sete mil atingidos, mas foi impedida pela Justiça.
De acordo com Luiz Paulo Siqueira, da coordenação nacional do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM), a mineradora tem agido na contramão de seus compromissos e das responsabilidades determinadas pela Justiça. “Em pleno pós-crime, com milhares de famílias que não foram sequer indenizadas, cortando auxílio emergencial e negando reconhecimento de sujeitos atingidos. Sem resolver esses problemas, a Vale vai enviando lucros para acionistas. Isso revela uma contradição escancarada, uma ausência de zelo, de responsabilidade, de prezar por uma atuação harmoniosa nas comunidades e nos municípios onde atua”.
Um ano e meio depois do crime em Brumadinho, 13 pessoas seguem desaparecidas e outras 257 foram encontradas sem vida. Os impactos sociais e ambientais causados pelo derramamento dos 13 milhões de metros cúbicos de lama sobre o leito do Rio Paraopeba ainda estão sendo mensurados, tamanha destruição causada pelo crime da Vale. As Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) estão trabalhando junto com as pessoas atingidas no dimensionamento desses danos, para que a reparação coletiva desses impactos seja disputada na Justiça.
Prioridades da Vale: imagem x realidade
“Reparar os danos de maneira justa e ágil é fundamental para as famílias afetadas pelo rompimento da Barragem I, e nós priorizamos iniciativas e recursos para esse fim”. Foi assim que a Vale definiu a prioridade da companhia, no relatório que apresentou em abril deste ano para seus investidores. Mas como será possível priorizar recursos para reparação enviando lucros para acionistas?
Segundo Siqueira, o retorno à política de dividendos é um absurdo e demonstra a forma de atuar da Vale e de organizações do capital minerário. “Esse é modo de atuarem no território, não importando com as consequências que vão ser geradas para elas obterem e maximizarem seus lucros com o saqueio dos nossos minérios. Então, neste sentido, ela mantém a mesma postura de risco de antes do rompimento [das barragens], de optar sempre pelo lucro, ao invés da vida e dos direitos das comunidades, de pensar uma forma de operar de maneira menos agressiva nos territórios. A Vale só quer garantir lucros, independente das consequências, sejam vidas perdidas, direitos negados, água, tradições destruídas”, denuncia.
O sociólogo, professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e pesquisador do grupo de pesquisa e extensão Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS), Tádzio Coelho, explica que, mesmo em meio à crise mundial causada pela pandemia do novo Coronavírus, a demanda de minério de ferro aumentou por causa da rápida recuperação da economia chinesa, principal compradora do minério de ferro brasileiro. “Isso colabora para o crescimento do minério de ferro, que é o principal ativo da Vale. E tem outra questão: a Vale pode ter diminuído sua atividade em mineração [após o crime de Brumadinho], principalmente em locais em que haveria risco de rompimento, mas ela aumentou a atividade em Carajás, no Pará. Isso também leva ao crescimento dos ativos financeiros da empresa”.
Luiz Paulo Siqueira também comenta sobre os bons resultados financeiros que a Vale tem apresentado com relação ao ano passado. Segundo ele, o aumento nos lucros também estão relacionados à alta do dólar e ao aumento do preço do minério, no início do ano. “Isso fez com que empresas intensificassem a exploração e a produção para aumentar o nível de lucratividade. E isso também representa mais conflitos nos territórios, aumenta a produção sem ter uma estruturação melhor das barragens e de outras estruturas na mina, que têm a segurança comprometida. E associado a isso, também tem uma negação de direitos nos territórios. Em Catas Altas, por exemplo, tem a Mina do Complexo Fazendão que está em plena ampliação. E vão tentar licenciamento agora no fim do mês, o que acarreta impactos para a comunidade: contato com poeira, comprometimento no abastecimento de água, dentre outros”, conclui.
Mesmo com um cenário de mais de 82 mil mortes causadas pela Covid-19 no Brasil, a Vale manteve as operações durante a pandemia. Segundo Siqueira, a atividade minerária não deveria ser considerada como essencial. Para ele, a empresa tem se aproveitado do momento e das dificuldades do setor público para lidar com o contexto, para criar uma imagem de agente que contribui com a sociedade, doando máscaras e suprimentos relacionados ao coronavírus, por exemplo. “Eles se aproveitam do momento de dificuldade para se promoverem. Aí os projetos deles vão ficando mais palatáveis. A Vale vai melhorando a relação com comunidade, com o poder público… E num momento de pandemia, a chegada destes projetos os torna mais palatáveis. É um momento de desemprego, aí a Vale chega com 200 empregos… o povo faz até campanha pra ela ficar. Eles se aproveitam da pandemia e da impossibilidade de mobilização dos movimentos, se aproveitam para ‘passar as boiadas’”, conclui, se referindo à fala feita pelo ministro do meio ambiente, Ricardo Salles.
Siqueira destaca que a mineradora está contribuindo para levar e aumentar o contágio pela doença nos territórios. “Em Conceição do Mato Dentro, por exemplo, tem muitos contaminados por Covid-19. Em Catas Altas, as primeiras notificações davam conta de sete casos e seis deles eram de trabalhadores da Vale. Um deles era a mãe de um trabalhador. Então, quem levou a doença para estes municípios foi a Vale”, denuncia o representante da coordenação do MAM.
Ele defende que só a partir da organização e da luta coletiva será possível barrar o comportamento de lucro acima de tudo, que a Vale vem tentando aplicar a todo custo. “Teremos um cenário pós-pandêmico difícil, de acirramento de conflitos nos territórios. Ao mesmo tempo, há um movimento da sociedade que está entendendo estas contradições. Tem mais gente se envolvendo, mais organizações participando dos processos de enfrentamento, uma série de entidades, de movimentos e articulações, o que é essencial para superarmos juntos esta conjuntura”.
A luta das pessoas atingidas, junto das ATIs e das instituições de Justiça (Ministério Público e Defensoria Pública), é essencial para garantir a reparação integral dos danos causados pelos crimes da Vale.
Luiz Paulo Siqueira relembra que um dos pontos da reparação é garantir que crimes como os de Brumadinho e Mariana não voltem a acontecer. Ele reivindica que as empresas que causem danos desta dimensão à sociedade deveriam perder o direito de atuar: “a Vale, ao invés de reparar todos os danos e prejuízos causados, prefere enviar o lucro a partir da exploração para seus acionistas. Isso para nós é inaceitável, e mais do que isso: o que reivindicamos é que empresas criminosas, tal como a Vale, não tenham direito para o licenciamento ambiental de novos projetos. E, inclusive, de dar continuidade aos projetos que romperam, enquanto todos os danos não forem reparados e os direitos dos atingidos não forem garantidos”, defende.
Reportagem: Fernanda Brescia e Julia Rohden | Edição do texto: Ennio Rodrigues | Foto: Acervo Guaicuy | Narração e edição de áudio: Fernanda Brescia | Edição de imagens: Daniela Paoliello
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