O “medo assustador” e a luta por direitos

Durante reuniões de núcleos comunitários, a população de Antônio Pereira relata sofrimentos causados pela Vale na comunidade. O medo, alerta constante do perigo vivido, é um dos principais danos relatados.

Durante reuniões de núcleos comunitários, a população de Antônio Pereira relata sofrimentos causados pela Vale na comunidade. O medo, alerta constante do perigo vivido, é um dos principais danos relatados.

Comunidade de Antônio Pereira (MG) se organiza em reuniões de núcleo comunitário na luta pela reparação dos danos causados pela Vale. Foto: Hariane Alves/IG

Em Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto (MG) atingido pelo risco de rompimento e obras de descomissionamento da Barragem Doutor, da Vale, a população vive sob o medo de um possível rompimento da barragem Doutor, entre outros impactos negativos causados pela mineração predatória e pela descaracterização da barragem. “O medo assustador está no coração de cada morador de Antônio Pereira, porque é impossível estar aqui e não sentir um grande medo e uma grande angústia com tudo o que está acontecendo”, relata Jaqueline Santos, moradora atingida que reconhece a origem de tanto sofrimento. “Isso acontece pela forma como estamos sendo tratados, sem respeito! A gente precisa sim da mineração, mas de forma respeitosa e digna”.

Relatos como esse surgem durante as reuniões de núcleos comunitários realizados pelo Instituto Guaicuy junto à população de Antônio Pereira. São diversos os danos e violações de direitos que têm sido sistematicamente apresentados pelas pessoas atingidas. Sérgio Ferreira, morador atingido de Antônio Pereira, relembra a forma como a comunidade foi informada do risco. “A notícia de ameaça de rompimento e da necessidade de fazer o descomissionamento abalou as pessoas, deixou todo mundo assustado, principalmente pela forma que chegou para a comunidade. Chegaram aqui, como se chamassem para uma reunião como essa, e o prefeito falou: ‘todo mundo que vai ter que sair é pra amanhã! A partir de amanhã a Defesa Civil já vai estar no território’. Então, quando aconteceu, em 2020, foi assustador e até hoje ainda continua sendo. Quando toca a sirene… Jesus!”.

A sirene, aquela mesma que não tocou quando rompeu a barragem da Samarco, Vale e BHP em Mariana, em 2015, nem quando rompeu a barragem da Vale em Brumadinho, em 2019. Essa sirene é fator de ansiedade para a população de Antônio Pereira. “Quando toca aquela sirene, no primeiro sábado do mês, me bate uma angústia, mas uma angústia tão grande que parece que o mundo tá acabando! É um pânico gigantesco quando eu ouço aquele som”, relata Jaqueline.

Os núcleos comunitários são espaços coletivos de organização e luta pela reparação integral dos danos causados pelo risco de rompimento e obras de descaracterização e descomissionamento da Barragem Doutor, da Vale, em Antônio Pereira. Créditos: Leo Souza/IG

O tempo da justiça

Nesse contexto de intenso conflito socioambiental, os danos causados pela descaracterização e descomissionamento da barragem Doutor são agravados pela morosidade da justiça e pelo descaso da Vale no processo de reparação. Indignados, moradores exigem mais agilidade por parte das instituições envolvidas. “Não dá para todo mundo esperar de cinco a dez anos para começar a receber o que é de direito, não acho justo! Todo mundo tem suas necessidades!”, destaca Sérgio.

Ronald Guerra, coordenador do Instituto Guaicuy no projeto da Assessoria Técnica Independente (ATI) de Antônio Pereira, comenta: “Os tempos judiciais são cruéis, é dano sobre dano, e o tempo inteiro a Vale vem interpondo recursos”. Ronald relembra as conquistas da comunidade: o reconhecimento judicial de que se tratam de pessoas atingidas e o direito ao assessoramento técnico independente. “Nós chegamos no território, fizemos o planejamento que foi aprovado pela juíza, mesmo assim a Vale está questionando o processo”.

A luta por reparação justa e integral

A população de Antônio Pereira resiste e luta pela garantia dos seus direitos, celebra as conquistas já alcançadas e cobra agilidade nas ações de mitigação dos danos e de reparação integral dos direitos humanos violados. Entre as lutas, a exigência de um auxílio financeiro emergencial, que ajude a mitigar os danos socioeconômicos causados pela mineradora é recorrente. “Todos têm direito, um valor mínimo já tem que começar a ser pago, nem que seja mensal. São oito mil pessoas atingidas aproximadamente. Isso já tem que começar a receber, num prazo menor”, afirma Sérgio, que questiona: “como levar isso para o Ministério Público? Como levar para a juíza?  A gente precisa começar a se movimentar de uma outra forma! O prejuízo já está aí! Tem três anos que noticiou [o risco de rompimento], então tem que olhar para isso com mais atenção”.

Algumas das motivações da comunidade para solicitar pagamentos emergenciais também são mencionadas nas reuniões com a Assessoria Técnica Independente. Entre elas, destacam-se: a perda de trabalho e renda com a proibição do garimpo tradicional e a remoção de parte da população da zona de autossalvamento (ZAS); o aumento dos custos com saúde física e mental; os gastos de tempo e recursos com transporte, uma vez que a principal via que liga Antônio Pereira à Mariana e Ouro Preto está tomada por um fluxo intenso de veículos pesados da mineração e das obras de descomissionamento da barragem; aumento no custo de vida, especialmente relacionado à especulação imobiliária, pois os aluguéis sobem em razão da população flutuante trazida pela mineradora para as obras; os gastos extras com água e lazer visto que espaços coletivos, cursos d’água e cachoeiras foram atingidos pelas obras e/ou têm seu acesso negado para a população local, entre muitos outros.

Izabella Resende, gerente do projeto da ATI de Antônio Pereira, destaca uma das atribuições dadas à equipe do Guaicuy nesse processo. “A juíza definiu que essa equipe do Instituto Guaicuy, que é a Assessoria Técnica Independente, viria aqui conversar com as pessoas e dialogar sobre os direitos que estão sendo ameaçados, sobre os danos causados, para fazer com que mais pessoas saibam disso”. Izabella, que também coordena a equipe de Mobilização Social da ATI, reforça que essas informações coletadas durante os núcleos comunitários serão repassadas tanto no processo judicial, em que a Vale responde como ré, quanto para as instituições de justiça e outros atores sociais envolvidos nesse processo. “Tem muita gente envolvida, tem também a própria imprensa e a sociedade em geral, que precisam saber o que está acontecendo aqui”, afirma. 

Ronald Guerra também reforça o entendimento da ATI sobre fazer chegar as informações sobre os danos aos agentes responsáveis por garantir os direitos da população. “Realmente esses tempos judiciais não são simples. Pelo menos agora, estamos aqui, com condições de traduzir tudo o que as pessoas atingidas estão falando, documentando e levando para a juíza o tanto que essas pessoas estão sofrendo. É isso que podemos fazer. Nós pegamos tudo isso e colocamos no processo judicial”.

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