Lembranças e saudades: águas que fluem contra o apagamento causado pela mineração exploratória

As lembranças são como água corrente, descem em enxurrada sem conectar a um tempo de relógio, ou vem devagar descendo a ribanceira, limpando e abrindo caminhos. As histórias, a saudade e as lembranças ao longo da Bacia do Rio Paraopeba seguem seu curso, à revelia da narrativa das empresas da mineração, que não respeitam nem as águas e nem os afetos que nelas fluem. 

Dona Maria, moradora de Estância das Garças (Felixlândia) é uma narradora das águas. Ela chegou na região carregada por um caminhão com outros tantos paraibanos para trabalhar nas carvoarias “Nós viemos comprado, mesma coisa que comprar um objeto. Eu quase morri, levei 10 anos para pagar essa dívida”, conta de uma lembrança que não tem saudade: quando se sentiu uma mercadoria. 

Maria sente saudade mesmo é dos caminhos das águas. Um dia ela ouviu falar da represa e em um domingo convidou João, seu marido, para expiar e lá ficou. “Quando eu vim morar aqui eu usava água da represa para tudo. Para beber, para tomar banho, lavar roupa. Minha neta aprendeu a nadar garrada nos pau, nas fontes. Ela ficava garrada ali e eu lavando roupa”, lembra. 

Dona Maria conta das memórias de quando chegou na região, viu a represa nascer e dar a ela a condição de construir seu rancho e criar sua família. Foto: João Carvalho/Instituto Guaicuy.

Ela lembra que seus filhos pegavam carona no domingo para poder estudar e ela os buscava na sexta. “Aí, estava trovejando e nós a pé pra chegar antes da chuva. Quando tava de seca, a lua clara que nem o dia, vinha eu com os meninos com a trouxa na cabeça. Roupa pra lavar na represa”, conta saudosa.

O relato de dona Maria se soma a tantos outros ao longo do Paraopeba e da represa. Para a professora e pesquisadora de memória Karina Barbosa, nas comunidades atingidas por barragens e pela mineração, o afeto, a saúde mental e a perda de subjetividades são continuamente negadas. “Quando trazemos os afetos, trazemos outra dimensão para reparação. Você repara território, mas o alcance não pode ser só material. Qualquer matriz que só se apega ao material é incompleta e é outra violência contra esses corpos. Você tem direito de sentir saudade daquilo que você vivia antes porque você não procurou essa mudança, não foi um fenômeno natural, existe um responsável”, explica. 

E sentir saudade para quem vive em um território atingido por rompimento de barragem pode estar ligado a situações diversas: a saudade de pescar no rio, de receber os amigos e familiares em casa, saudade da antiga rotina ou dos planos que poderiam ser feitos antes dos impactos causados pela mineração exploratória e desenfreada. 

Para Dona Márcia Rita, moradora da comunidade de Encontro das Águas (Curvelo), a saudade também está no que eles esperavam para o futuro. “Saudade dos sonhos que a gente tinha com relação ao rio e com projetos para a nossa terrinha. Tinha planos, projetos e hoje em dia a gente sente saudade de planejar algo, dos sonhos que a gente tinha tava começando a pensar. Saudade da época em que meus filhos e netos aproveitaram demais o rio”. 

Dona Marcia exibe alegria na foto, saudosa dos encontros familiares. Foto: Arquivo Pessoal.

Para o senhor José Vicente Paulino, pescador e peixeiro de Abaeté, a saudade é da saúde e de poder trabalhar tranquilamente. “O que eu tenho saudade, eu vou contar procê, é da minha saúde. Porque a minha saúde dinheiro nenhum paga. Peixe não paga, a Vale não paga, ninguém nem nada paga não. Só Deus, né? Então é da minha saúde e de voltar a pescar do jeito que eu pescava. É o meu ramo, uai! É o que eu sei fazer! Aí, meu documento pendurado (licença de pesca). A minha saudade é essa. Eu voltar a ter minha saúde igual eu tava e voltar pra água, lá que é lugar nosso!”, conta. 

Sr. José Vicente, Abaeté, conta que, em função do rompimento, sente saudades da lida na pesca e de tocar sanfona profissionalmente.

Falar de saudade é também resistir contra o apagamento produzido pela mineração exploratória

Falar sobre a saudade é também uma forma de registrar as memórias individuais e coletivas. Por isso é importante e potente que as pessoas afetadas pelo rompimento da barragem tragam esse registro em um território de constante disputa pela narrativa: das pessoas atingidas que lutam em defesa da vida e ainda tantas outras narrativas que se apresentam no cenário. 

“Essa é uma luta contra o esquecimento. Sabemos que no mundo capitalista as corporações procuram enterrar as outras esferas para fazer prevalecer as histórias delas. Porque isso permite colocar a máquina minerária a todo vapor de novo”, argumenta Karina. 

Karina Barborsa concedeu entrevista sobre seus estudos de testemunho e memória junto à pessoas atingidas por mineração. Foto: Acervo Pessoal.

As histórias de Dona Maria dão conta de povoar o imaginário sobre uma represa que trouxe riqueza e trabalho. “Quando a gente chegou, em 1960, fazia um frio e as mulher iam com uma cuinha (cuia) tirar água para molhar a horta. tinha fartura na época, porque não vendia, não ousava vender, não tinha ninguém pra comprar.  Eu tenho saudade ainda daquela época, mas não do carvão, mas quando a represa veio e era uma fartura de peixe, eu ia com uma varinha de mororó que tem aí. Mas eu pegava tantospeixes, mas tantos peixes, que comia aquilo, só tinha farinha e peixe no rancho, não tinha mais nada”, conta. 

Para Karina, que também é uma das articuladoras do jornal A Sirene, ao trazerem suas memórias à tona, as pessoas que sofrem por esse tipo de crime não apenas criam contra-narrativas, mas também fortalecem o “reconhecimento de que esses crimes e catástrofes têm dimensão afetiva. Tem impacto humano e ambiental, mas tem impacto afetivo”. 

Dimensões afetivas que hoje precisam encontrar forças para resistir além dos antigos problemas que já encontravam nas comunidades. Mas é preciso ir com calma. “Precisamos resistir, mas ao mesmo tempo nós precisamos entender o quanto é difícil resistir de uma vida que antes não precisava resistir nestes termos. E agora precisa resistir contra a máquina minerária”, completa Karina. 

 “Sim, tenho saudades.

Sim, acuso-te porque fizeste

o não previsto nas leis da amizade e da natureza

nem nos deixaste sequer o direito de indagar

porque o fizeste, porque te foste”

O trecho de “A um ausente”, de Carlos Drummond de Andrade, revela o sentimento de quem ficou em relação ao que partiu. Daqueles que, por algum motivo, deixaram os parentes, os amigos e o lar de forma súbita e não natural. Um corte brusco, uma ruptura, descontinuidade. 

Como nas regiões atingidas pelo rompimento da barragem, onde não se vê mais com tanta frequência os visitantes, pescadores e familiares, que outrora vinham aproveitar os momentos de lazer às margens do Paraopeba, Lago de Três Marias e região atingida do Velho Chico. E além da esperança por dias melhores, restou a saudade de quem ficou e a resistência de quem luta por uma reparação integral e justa. 

E você, do que sente saudade?

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