Histórias de pescadores: Um rio em forma de oração à vida

Texto da série Histórias de Pescadores: Quando um pescador estima o Velho Chico como se sua família fosse

Ao completar meio século na lida com a pesca e já tendo catalogadas em sua memória as várias espécies de peixes bem à sua frente, o pescador Norberto Antônio dos Santos tem é história para contar. 

Mas, entre um “causo” e outro, – que são tantos – ele responde: “o que é o rio pra mim? É tudo, todos os dias eu amanheço com a visão do Rio São Francisco logo à minha porta. Esta é a minha primeira oração”. 

Para o pescador, o “bom-dia, vida”, com o qual ele consagra mais um ponto em sua existência, tendo as águas do Velho Chico como manto sagrado, não é pouco. Emocionado, diz que sente pelo São Francisco o mesmo que sente pela sua família: “é a minha vida”.

Morador do Beira Rio, localidade mais próxima de Três Marias do que da sede do município de São Gonçalo do Abaeté, ao qual pertence, Norberto Antônio é contrário à construção de barragens. Ele acompanhou de perto o sumiço de muitos peixes, associado a esse modelo de geração de energia, que ele considera equivocado. 

Antenado com as tendências mundiais do setor energético, Norberto garante que muitos países estão desativando suas barragens “pelo simples fato de que essas usinas impedem os peixes de migrar e fazer a desova, garantindo assim a reprodução da espécie”. Para ele, de uma forma ou de outra, todos somos predadores, desde os pescadores amadores e profissionais até os da pesca subaquática praticada naquele trecho.

Entre as críticas aos que insistem em prejudicar o Rio São Francisco, reconhecido como o rio da integração nacional, por percorrer vários estados e grande parte do país, o pescador lista também as agressões sofridas. Para ele, as agressões vão desde o despejo de esgoto da Copasa e o excessivo uso de agrotóxico que escorre para dentro do Velho Chico até os rejeitos derramados com o rompimento da barragem de minério, em Brumadinho 

“O cheiro da água continua terrível e por este desastre ficamos muito prejudicados”. Conta ele que na época foram muitos os peixes que tiveram que jogar fora – “com congeladores cheios do nosso ganha-pão tivemos que dispensar tudo porque os compradores não queriam comprar peixes [que suspeitavam estar] contaminados”. Mas nem só de lamúrias vive este pescador. Acredita que a luz no fim do túnel atende pelo nome de lagoas marginais, reconhecidas como verdadeiras maternidades em toda a extensão do longo trecho que vai de Três Marias a Sobradinho. Esses autênticos santuários, em sua opinião, protegeriam os alevinos e resguardariam uma maior sobrevida às espécies que está vendo desaparecer a cada ciclo reprodução.

O perigo está por toda parte – das barragens hidrelétricas às minerais – até a grande quantidade de tucunarés.

Para Norberto, são os tucunarés a alegria dos pescadores esportivos, mas é, ao mesmo tempo, a maior praga já introduzida no grande lago. “Por onde passam destroçam as outras espécies. Outro dia vi  aqui um tucunaré com mandim de 16 centímetros na barriga”. Saudosista, lembra do tempo em que pescar surubim não era raridade como agora.    

Se Norberto tem o rio como sua paixão, além do seu sustento, outros pescadores enxergam ali, simplesmente, uma profissão necessária para alimentar a família. É o caso de Vicente de Paulo Pereira da Fonseca, que tem seis filhos entre quatro e 28 anos. Há 17 anos ele trocou o ofício de carvoeiro e trabalhador rural para se enveredar pelas águas do Paraíso, o que eles chamam de um braço do São Francisco no município de Felixlândia, banhado em grandes curvas por quase todo o território. 

Aos 55 anos, não se arrepende e nem se assusta com os estragos na pele escurecida e maltratada pelo sol escaldante da região. O que lamenta é o prejuízo que teve após o rompimento da barragem da Vale. “O prejuízo foi grande, perdi muita venda”, relembrou enquanto tecia sua rede de pescaria sob a sombra de uma mangueira na pacata rua em que reside, em Felixlândia. De dentro da casa, o filho Paulo Henrique também confeccionava o instrumento de trabalho. Aos 20 anos, foi o único a se aventurar a seguir a profissão do pai. “Gosto demais de pescar e acompanho meu pai desde os 13 anos”. Remenda rede, pesca e sabe limpar bem o peixe.

Mais do que uma profissão, para Maria Dulcilene da Fonseca – a Maria Dulce – o ofício de pescadora profissional é o negócio da família e uma atividade prazerosa que ela exerce junto com o marido, Marquinhos. Chegou à Barra do Paraopeba, no trecho margeado de um ponto a outro entre Pompéu e Felixlândia, há quase 20 anos, onde antigamente se fazia a travessia da balsa entre os dois municípios. A filha mais velha, que hoje tem 22 anos, ainda era bebê. 

Dulce, como é mais conhecida, adora pescar e, como pescadora, faz tudo que um homem pescador faz. “Armo e tiro a rede sozinha e faço de um tudo, mas no início sofria preconceito por ser mulher”, diz ela ao destacar que até hoje quando vai à cidade, toda arrumada, tem quem duvida que ela domine o ofício e exerce realmente o ofício da pesca. “Sou vaidosa, sim. Gosto de fazer minha sobrancelha e pintar minhas unhas, mas poucos fazem o que faço no rio”.

Bem sabe ela que tem muitos (e muitas) que se dizem pescadores e nem mesmo diferenciam um curvina de um curimba ou curimatã. Surubim, nem se fala, já que se tornou uma raridade pelas águas do Paraopeba e São Francisco. Entristece com os novos tempos e ainda sofre com os impactos. Até hoje se diz traumatizada com os danos do rompimento da barragem da Vale. Ela mesma chegou a ficar de cama, com fortes dores de cabeça e lesões na pele. “Passei muito mal, gastei com remédios e tratamento médico, tivemos prejuízo com congelador cheio de peixe e energia cara”, salienta.

Para o lendário e simpático casal Neide e Zé do Violão, vizinhos de Maria Dulce e protagonistas de uma linda história de amor, é o entardecer do dia, com o sol se pondo nas águas do Paraopeba ou a lua cheia dando potência às melodias que ele ainda canta para ela, que testemunha a luta diária. A vida hoje, segundo ela, está dificultada por todo esse cenário atual dos impactos do rompimento, pandemia somada a isolamento e pelas dificuldades inerentes à velhice. 

Conta ela, que o até hoje namorado, Zé do Violão, veio em sua companhia de Pernambuco, sua terra natal, deixando para trás também a Bahia, onde o marido nascera. Ela, à época, tinha 16 anos e negros cabelos longos. Nos atuais 61 e mais os 83 anos do marido, não entende porque os dois ainda têm que trabalhar tanto, mesmo após tantos anos de pescaria. 

Entre os remendos que faz nas redes e o preparo dos filés de peixe para vender às peixarias, vêm as lembranças dos bons tempos. Neide não pesca mais com a mesma desenvoltura devido complicações no menisco. Mas é ela, junto às recordações das canções preferidas (Boneca Cobiçada e Dama de Vermelho) que dá vida a casa e alegria à vizinhança. Espirituosa que só, tem muitas histórias de pescador a contar. Ah, como tem…

Texto: Leidélia Teixeira Villefort.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui