Era 1910 quando mulheres trabalhadoras se reuniram para lutar por seus direitos como o voto, paridade de salários em relação aos homens e melhores condições de trabalho. De lá para cá o dia 8 de março é marcado por manifestações e reflexões em todo o mundo sobre a situação da mulher na sociedade. Nas águas do rio Paraobepa, do Lago de Três Marias e do rio São Francisco, as mulheres atingidas também buscam seus direitos: pela reparação integral de suas vidas, famílias, territórios e comunidades.
São as mulheres que mais sofrem as desigualdades econômicas e sociais. Rio abaixo, rio acima, as atingidas pela mineração e pelo rompimento da barragem têm sua saúde mental e física afetadas. Assim como os espaços de socialização, lazer, cultura e trabalho. Embora os danos alcancem a todos e todas, sem distinção de gênero e raça, são as mulheres, sobretudo as negras e indígenas, que ressentem ainda mais das transformações impostas nos territórios.
Segundo dados da equipe de Pesquisa e Ciências Sociais do Guaicuy, estima-se que aproximadamente 17.205 mulheres vivem nas comunidades atingidas das regiões 4 (Pompéu e Curvelo) e 5 (Região do Lago de Três Marias e algumas comunidades do São Francisco).
Mulheres atingidas:
alimentação e relações comunitárias abaladas
“Menos compartilhar, menos navegar,
menos pescar, menos saúde, menos lazer”
“Piau sumiu. Mandi acabou. Amarelão”
“Alimentação está gastando mais, porque
estamos comprando carne para substituir o peixe”
Das coisas que elas mais sentem falta é de compartilhar os alimentos e de ficar no rio. “Menos compartilhar”, dito por elas, é também um dos efeitos nas relações comunitárias. O lazer e os hábitos culturais foram diretamente impactados: “Às vezes a gente está em casa meio estressada e a gente corre pra cá, senta no barco e você não pensa mais em nada. Nem que deve (risos)”, conta Marlene.
Segundo o Acolhimento Psicossocial, 65,2% das mulheres atendidas afirmaram que a própria alimentação piorou após o rompimento da barragem, pois diminuiu a variedade de alimentos (36,6%) ou mesmo deixaram de produzi-los (28,2%).
Horta da Eva em La Poveda, Felixlândia, moradora afirma que teve dificuldades de manter sua horta quando adoeceu pós rompimento, mas já retomou as atividades. Foto: Sarah F. Santos/Instituto Guaicuy.
Trabalho, produção e renda de mulheres
atingidas são prejudicados com o rompimento
Silvia Leal, Três Marias, é uma mulher das comunidades atingidas cujo caso exemplifica a relação produção, trabalho e alimentação. Ela cultiva horta, cria animais e produz derivados de leite. Com a produção própria, ela abastecia o restaurante e cuidava da alimentação dos turistas que outrora se hospedavam na pousada da família.
Atividade “Mulheres bordando a luta pela reparação integral” permitiu discutir danos com mulheres na Ilha do Mangabal.
Fotos: Instituto Guaicuy
A vida pós rompimento trouxe dívidas e dificuldades de escoamento da produção, pois o acesso à cidade é oneroso. Por isso, Sílvia considera que as mulheres foram particularmente prejudicadas. “Eu acho que nos atingiu de forma diferente, porque tem muita gente que vive de faxina, de cozinhar (para os turistas). Eu, por exemplo, minha renda, vivo do turismo, muitas vezes do pessoal que vem, eu tenho minha renda de comida que eu faço, do meu tira gosto aqui no bar. De qualquer forma, a gente foi muito atingida”, conta.
Três gerações: Juliana, Bianca e dona Tata vivem da renda da pesca. Foto: Laura Alice Silva/Instituto Guaicuy
Segundo a equipe de Estudos Sociais do Guaicuy, é possível indicar que as famílias chefiadas por mulheres estão mais vulneráveis à privação material e de direitos associadas à renda. Essa tendência se agrava ao se identificar domicílios chefiados por mulheres.
Dona Maria Eladir, artesã de Morada Nova de Minas, conta que a casa dos artesãos do município quase fechou após o rompimento. “Não tinha artesão direito, ninguém queria ficar e participar. Parou as coisas, não vinha mais turista em Morada. Agora que tem mais turista e tudo, mas a casa quase fechou” relata.
A artesã diz ainda que algumas mulheres se movimentaram recentemente para a retomada dos trabalhos. “Umas estavam sem trabalho, outras são donas de casa ou aposentadas. Fizemos reuniões e convidamos os artesãos para colocarem os produtos na casa, igual tá aí, toda arrumadinha, com as coisas bem feitas, bonitinhas.”
Segundo a Pesquisa Domiciliar realizada pelo Guaicuy, 21,6% dos domicílios chefiados por mulheres na região 4 (Pompéu e Curvelo) vivem com até um salário mínimo por mês. Já na região 5, 31,9% das mulheres que são responsáveis pelo domicílio vivem com até um salário mínimo, o que reforça a importância de rendas extras, como a do artesanato, por exemplo.
Frases como “eu só ajudo meu marido na pesca” ou “eu não trabalho só fico em casa”, ainda são comuns nos territórios. O trabalho desenvolvido nos quintais, tais como hortas ou criação de animais de pequeno porte, ou mesmo o trabalho doméstico é comumente desvalorizado. A pesquisa aponta que elas continuam sendo a maioria sem trabalho remunerado, respondendo por 70% desse público.
Atividade com Pescadoras e Pescadores no Encontro das Águas em Curvelo.
Foto: Tainara Torres/Instituto Guaicuy
Agravamento da
saúde mental e física
O Painel de Dados da Saúde do Guaicuy aponta que 38% das atendidas no Acolhimento Psicossocial relatam adoecimento físico após o rompimento da barragem. As principais causas são: dermatológicas (54,1%) e gastrointestinais (32,7%). Entre as mulheres que tiveram problemas dermatológicos e/ou gastrointestinais 48,2% correlacionam seu adoecimento com a contaminação da água do rio ou represa.
Sandra Aparecida de Sousa, de Ribeirão das Almas (Felixlândia), é uma das mulheres que manifestou manchas na pele, após o rompimento, aumentando a insegurança em relação ao uso da água. Diante desta realidade, Sandra afirma a necessidade das mulheres estarem ativas no processo pela reparação. “Quanto mais participação tiver melhor é para que os projetos venham dar andamento para que saibam o quanto nós necessitamos desses danos serem reparados”, diz.
Ainda sem causa definida, algumas mulheres apresentam problemas de pele após contato com a água.
Foto: Laura Alice Silva/Instituto Guaicuy
Sentimentos de preocupação (66,0%), tristeza (61,8%), ansiedade (46,1%), angústia (41,4%) e insegurança (35,1%) são os mais frequentes nos relatos dessas mulheres durante os acolhimentos*. Mudança nos modos de vida e privação de acesso à água são os principais fatores apontados por elas.
Para Paula Mota, coordenadora da Equipe de Saúde, as mulheres merecem uma atenção em relação ao processo de reparação. “Desastres como este afetam especialmente as mulheres, pois elas costumam estar sobrecarregadas pela responsabilidade de cuidar de suas famílias e se envolvem mais com a luta pela reparação integral dos danos sofridos, sendo elas a maioria entre as lideranças comunitárias”, conclui.
* Painel de dados em Saúde