Artigo produzido pela equipe de Ciências Agrárias
Para nós, do Guaicuy, a água e o alimento são um meio de conexão entre pessoas e seus territórios, por isto, procuramos compreender a complexidade e a riqueza destas relações. Nessa abordagem, buscamos o diálogo com os saberes tradicionais. Diante disto, a equipe do Instituto Guaicuy presente nos territórios (que compreende a 10 municípios que compõem as áreas 4 e 5) tem observado que as pessoas atingidas sofreram danos relacionados à soberania e segurança alimentar. Mas afinal, o que significa soberania e segurança alimentar? Qual a relação do rompimento da barragem sobre a soberania quanto à segurança alimentar e nutricional? Buscamos apresentar aqui estas questões.
Discutir e entender os conceitos é fundamental para compreender como se deu e se constrói a perspectiva de segurança alimentar e soberania alimentar nos territórios. Ambos os conceitos se orientam sob óticas distintas e são importantes no debate sobre comunidades rurais e urbanas.
Segurança e soberania alimentar
Segurança alimentar parte do princípio do direito de todos e todas terem acesso de forma regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades básicas essenciais, como moradia, educação, saúde e lazer. Não trata apenas do acesso a alimentos em quantidade suficiente, mas também alimentação nutricionalmente saudável, diversificada, respeitando a cultura e o modo de viver das famílias. As discussões sobre segurança alimentar por vezes destacam o desperdício de alimentos e as relações de oferta e demanda dos mercados. O entendimento acerca da segurança deve ser compreendido enquanto suas convergências e divergências.
A soberania alimentar trata do direito dos povos em terem autonomia sobre o que produzir, para quem produzir e em que condições produzir. Ela destaca também o acesso aos meios de (re)produção (sementes, água, acesso à terra, etc). Portanto, a soberania alimentar abarca discussões estruturais, incluindo de modelo de sociedade como estratégia para sanar os problemas relacionados à alimentação e nutrição (HOYOS, et. al., 2017).
No contexto da mineração, percebemos o comprometimento dos modos de vida de povos indígenas, comunidades tradicionais, agricultores familiares, pescadores, entre outros, devido aos desastre-crimes ou desdobramentos decorrentes da mineração. Para Bauman (2005), a mineração representa a ruptura, a descontinuidade, enquanto a agricultura garante a continuidade dos seres e ciclos, as sementes se multiplicam, as criações se reproduzem, o povo se alimenta. Sendo assim, o caráter espoliativo (extração de riquezas), exploratório e de expropriação (retirada) da mineração fere a soberania alimentar, que inclui a segurança alimentar.
Com o rompimento da barragem várias famílias passaram a ter dificuldade no acesso ao alimento saudável, gerou desconfiança na comida que está consumindo, medo e risco da contaminação dos alimentos e água, preocupação em não ter o que comer no dia seguinte. Muitas famílias também ficaram sem acesso a água e foram obrigadas a substituir alguns alimentos cultivados por alimentos industrializados. Quando falamos disto, estamos falando sobre perda da segurança e soberania alimentar.
Impactos do rompimento na alimentação das comunidades assessoradas pelo Guaicuy
O Instituto Guaicuy realizou diagnósticos rápidos-participativos, rodas de conversa, diagnósticos familiares (DFIPA) e visitas de campo nos territórios atingidos pelo rompimento da barragem de rejeitos da Vale S/A nas áreas 4 (Pompéu e Curvelo) e 5 (municípios na região do Lago de Três Marias).
Através dos relatos, percebe-se mudanças nos hábitos alimentares das pessoas, assim como a redução da diversidade dos alimentos produzidos e consumidos, aumento do consumo de alimentos industrializados e de baixa qualidade nutricional. Muitas famílias evitam o consumo de peixe, de ovos e de produtos derivados do leite, por causa do risco de contaminação existente, já que criam seus animais às margens e/ou com o uso da água do rio Paraopeba. Com isto, ocorre a perda do potencial de produção de alimentos para autoconsumo por causa da diminuição de áreas produtivas para lavouras, hortas, pastagens, vegetação nativa para o extrativismo e áreas coletivas. E, principalmente, pela falta de água enquanto insumo base para todas as produções rurais.
Houveram alterações no consumo urbano dos produtos da agricultura familiar relacionadas ao desabastecimento de produtos destinados a feiras livres e, no consumo rural, relacionadas à vizinhança ou circuitos curtos de comercialização. Como exemplo, podemos citar a venda do peixe que sofreu perda de reputação, os cultivos de cereais que não puderam mais ser irrigados e o gado que bebia a água do rio Paraopeba, entre tantas outras afetações.
Assim, por vezes, a principal fonte de renda das famílias foi comprometida, bem como o acesso a alimentos produzidos para o autoconsumo. Algumas famílias tiveram de cessar as atividades produtivas e pensam em deixar seus territórios.
O rompimento da barragem na mina do Córrego do Feijão em Brumadinho em 2019 acarretou em diferentes danos à população atingida ao longo da bacia do Paraopeba e Represa Três Marias presentes até os dias atuais. Dentre os diferentes tipos de danos estão aqueles relacionados à soberania e segurança alimentar. Por isso, atuamos junto das pessoas atingidas na luta para reparação integral em relação ao desastre-crime causado pela Vale S/A.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janiero: Zahar, 2012. 173p.
HOYOS, Claudia Janet Cataño; D’AGOSTINI, Adriana. SEGURANÇA ALIMENTAR E SOBERANIA ALIMENTAR: CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS/Food Security and Food Sovereignty: convergences and divergences. REVISTA NERA, n. 35, p. 174-198, 2017.