Relatos das pessoas atingidas revelam desestruturação da economia nas comunidades; documento foi incluído no processo e está sob análise do juiz
“No meu caso, eu tenho 44 cabeças de animal. Veio só 270 quilos de ração. Não dá pra nada. Minhas vacas estão passando fome. Tenho cavalo, tenho égua e não veio ração para eles. Como que faz para os meus bichos sobreviverem? Não sei mais para quem eu vou apelar”.
“Só [recebemos água da Vale] para o quintal e para os animais. Mas, mesmo assim, é o dia que ela [Vale] quer. Por exemplo, no mês de junho, a minha pata tinha tirado patinhos. Não tinha água e os patinhos morreram todos. Não tinha água pra nada, nem pra nós. Então, assim, a gente não dava conta de comprar água mineral para poder tratar dos bichos, né? Porque eles trazem a água o dia que eles querem. De 15 em 15 dias, de 20 em 20 dias… não dá. Se não trouxerem a água de três em três dias, 5 mil litros d’água não dá. Porque o quintal morre”.
“Hoje eu tenho medo de vender o peixe. A minha vida foi alterada. Meu filho, que vive em sofrimento mental, precisou sair daqui. Essa dor é imensa. Ver os filhos irem embora, ver a família se afastar”.
As situações acima passaram a fazer parte da rotina de moradores de comunidades de Curvelo e Pompéu (área 4) e de municípios banhados pelo Lago de Três Marias (área 5), depois do rompimento da barragem de rejeitos da Vale, na Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG). Muitas delas perduram, mesmo após 20 vinte meses do desastre.
Esses depoimentos foram retirados do Mapeamento Preliminar de Danos Transindividuais e Análise das Provas a Serem Produzidas na Ação Civil Pública n.º 5010709-36.2019.8.13.0024, relatório que reúne parte dos danos e prejuízos que as comunidades sofreram e seguem sofrendo após o colapso da barragem. Ele revela condições de vulnerabilidade econômica, comprometimentos de saúde física e mental, além da perda de ciclos, atividades, projetos e sonhos que foram interrompidos.
O documento foi produzido num esforço conjunto de pessoas que tiveram direitos violados e do Instituto Guaicuy, após reuniões para o Diagnóstico Rápido Participativo (DRP), rodas de conversa e contatos individuais. A participação das pessoas atingidas foi imprescindível para a produção desse compilado de depoimentos e dados. As outras Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) também produziram relatórios sobre suas respectivas áreas de atuação (áreas 1, 2 e 3).
Todos os relatórios foram incluídos no processo judicial por meio de uma petição em que o Estado e instituições de Justiça pediram a condenação parcial da Vale. Ela foi protocolada no dia 25 de agosto e está, agora, sob análise do juiz Elton Pupo Nogueira, da 2ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias de Belo Horizonte.
Antes disso, os relatórios passaram pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública de Minas Gerais, instituições de Justiça que representam as pessoas atingidas no processo coletivo, e de quem as ATIs são assistentes técnicas.
Fase saneadora do processo
Tendo em vista a imensidão e complexidade da destruição causada pelo crime da mineradora, o processo coletivo já conta com mais de 80 mil páginas. Para organizar o processo e definir o que já poderia ser julgado, o juiz estabeleceu uma fase saneadora, ou seja, de organização do processo.
Nesse sentido, as instituições de Justiça anexaram o relatório do Instituto Guaicuy e das outras Assessorias Técnicas ao processo judicial e, por entenderem que algumas provas estavam suficientes para comprovar parte dos danos, decidiram pedir à Justiça a condenação imediata da Vale para parte dos crimes.
Esse pedido, feito pelo Estado e por instituições de Justiça no dia 25 de agosto, trata especificamente dos danos morais coletivos e sociais decorrentes do colapso da barragem, estipulados em R$ 28 bilhões, e também das perdas econômicas que o Estado teve após o crime, mensuradas em R$ 26 bilhões.
Ações relacionadas a outros prejuízos causados ou intensificados pelo crime seguem tramitando normalmente na Justiça. Além disso, danos de outras naturezas ainda estão sendo levantados no processo coletivo.
A advogada popular do Instituto Guaicuy, Vanessa Lopes, defende que a Justiça leve em conta as realidades locais para a produção de provas. “Nós consideramos importante que as instituições de Justiça tenham colocado que o juiz precisa considerar provas testemunhais, aquelas provas faladas pela comunidade, atestando prejuízos às cadeias econômicas informais, moradia, porque, muitas das vezes, nós sabemos que comprovantes demandam burocracias com órgãos públicos e que nem sempre é possível conseguir esses comprovantes. Então foi pedido [ao juiz] que, em caso de dificuldade de prova documental, sejam consideradas provas testemunhais coletivas. Ou seja, aquelas produzidas pela comunidade, pois são as pessoas atingidas que sabem aquilo que sofreram”.
Além do pedido de que o juiz considere provas testemunhais, o Instituto Guaicuy também adicionou, no relatório, o pedido de que sejam realizados estudos para a coleta de provas nas cidades da área 5. Ou seja, foi solicitada a inclusão dos municípios banhados pelo Lago da Usina Hidrelétrica de Três Marias (São Gonçalo do Abaeté, Felixlândia, Morada Nova de Minas, Biquinhas, Paineiras, Martinho Campos, Abaeté e Três Marias) no processo de chamadas – pesquisas que estão sendo realizadas por um comitê da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para a produção de provas para o processo.
Dentre os prejuízos pós-desastre, moradores da área 5 citaram, nos diversos contatos com o Instituto Guaicuy: danos a atividades econômicas, sociais e dinâmicas ambientais: queda do turismo, alterações no preço e na demanda de pescado, alterações na qualidade das águas, dentre outros.
É o caso desta moradora da Ilha do Mangabal, que relata ter perdido clientes após o desastre: “Depois dessa coisa de Brumadinho eu passei a ir nos feriados porque eu não conseguia alugar mais [minha casa] porque as pessoas não queriam ir, porque tinha a suposta contaminação da água. (…) estamos recebendo menos turistas”.
Relatório demonstra complexidade dos danos
Os principais danos mencionados no relatório produzido pelo Instituto Guaicuy dizem respeito a danos decorrentes da perda de parentes, do rio e da relação com o rio e a natureza; perda de práticas culturais, da relação com animais ou mesmo a morte de animais; e também a perda dos espaços coletivos de sociabilidade e lazer.
Para a coordenadora de metodologias participativas do Instituto Guaicuy, Ângela Gomes, os danos são muito complexos e somente as pessoas atingidas podem dimensioná-los, por meio da fala, e, assim, se sentirem reparadas. “Pessoas foram mortas, estão desaparecidas, foram retiradas de seu território. A estrutura familiar dessas pessoas foi destruída, a fonte de renda também. Somente as falas das pessoas são capazes de reconstituir os bens imateriais que elas perderam, que não é bobagem. Pessoas não são feitas só de renda. São feitas de vizinhos que as ajudam, por exemplo. As pessoas precisam ter seus direitos à vida retomados”.
Todas essas faltas e impossibilidades acarretaram os mais diversos danos às comunidades, como o surgimento ou agravamento de doenças de ordem mental ou física; o consequente aumento dos gastos relacionados à saúde e alimentação, tendo em vista que muitas pessoas deixaram de se alimentar com cultivos e animais que criavam no quintal, com a água do rio, por exemplo; além do receio sobre a qualidade da água, a dificuldade de acesso à água limpa e muitos outros.
É o que ocorreu com estes moradores de Fazendinhas Baú e do Projeto de Assentamento (PA) Queima Fogo, ambos em Pompéu. Os dois relatam diversos “rompimentos” que seguem ocorrendo em suas vidas desde 25 de janeiro de 2019:
“Afastamos de lá porque não tem mais a água de beber. Eu tive que correr para outros lados porque eu não tenho como ficar lá sem água. Eu estive lá no final de semana e cortou meu coração de ver minhas plantinhas morrendo porque não tem mais água para regar… Não tem uma cebolinha, uma couve. Eu ficava uns dias na cidade trabalhando e ia para a roça. Tive que mudar minha vida, ficar na cidade, ir mudando para a cidade”.
“Nós pagamos R$100 por dia para encher as caixas d’água. Agora como que a gente leva o gado para beber a água de rio que está contaminada? Nós tivemos que vender as vacas porque sem alimentação a vaca não produz leite suficiente”.
O fornecimento de água para pessoas, animais e atividades produtivas a todas as pessoas que moram em Brumadinho ou até 1 mil quilômetros da calha do Rio Paraopeba, é de responsabilidade da Vale, e foi determinado pela Justiça logo após o crime. No entanto, segundo morador de Angueretá/Curvelo, a determinação não tem sido cumprida e os prejuízos têm sido constantes desde o desastre: “A gente tem uma fazenda a 400 metros do rio. A gente plantava 4 hectares de milho e 7 mil mudas de bananeira… Foi tudo perdido”.
Além das despesas mensais, a perda da renda dos aluguéis temporários, inviabilizou, em alguns casos, o pagamento das parcelas do financiamento realizado para a aquisição de algumas casas e interrompeu a construção de outras. A perda da possibilidade de venda dos imóveis também significou, para alguns, a desestruturação dos planos familiares a curto prazo, criando uma insegurança econômica para essas famílias a longo prazo.
É o caso de moradores de Recanto do Laranjo em Pompéu, como mostra este relato que também foi retirado do relatório do Guaicuy: “Uma questão é a desvalorização dos nossos imóveis, se a gente for tentar vender acredito que hoje a gente não consegue vender nem por um terço do valor que a gente tinha. (…) Hoje o local se tornou totalmente desinteressante, tanto para a gente que é adulto quanto para as crianças”.
Texto: Fernanda Brescia. Edição: Bernardo Amaral e Larissa Vieira. Fotos: Acervo Instituto Guaicuy.
Saiba mais:
Clique aqui para ver avanços do processo coletivo: relatório preliminar de danos.
Leia mais sobre a petição que pede condenação parcial da Vale por parte dos danos.
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Relembre: principais atores e responsabilidades de cada um no processo judicial.