Livro “O preço de um crime socioambiental” analisa acordo bilionário entre Vale e Poder Público no caso Brumadinho

Obra é fruto do trabalho de mestrado da pesquisadora Marina Oliveira, que é atingida pelo rompimento da barragem, e traz entrevistas com Instituições de Justiça, governo, Vale e comunidades

Os bastidores e os interesses privados e estatais que permearam o Acordo firmado entre a Vale e o Poder Público sobre o rompimento da barragem em Brumadinho são tema do livro “O preço de um crime socioambiental”, que será lançado na segunda semana de maio. A autora, a pesquisadora Marina Paula Oliveira, atingida pelo desastre-crime, explica que o objetivo principal da obra é levantar a reflexão sobre o papel do Estado na defesa da soberania popular e da justiça socioambiental. 

“As empresas são atores privados que estão buscando maximizar o lucro delas, mas o Estado é diferente, ele deveria defender o bem comum e o povo em primeiro lugar”, avalia a autora, que traz críticas sobre a falta de participação efetiva das pessoas atingidas na negociação do Acordo. Segundo ela, as demandas das comunidades atingidas foram minimizadas para dar espaço a outros interesses. Como exemplo, cita o Rodoanel, que foi contemplado por verbas do Acordo, mesmo sem ter sido pleiteado.  

“O preço de um crime socioambiental” é resultado do trabalho de mestrado de Marina, “ACORDO PARA QUEM? Uma análise do acordo firmado entre a Vale S.A. e o Estado de Minas Gerais no contexto do rompimento da barragem em Brumadinho (MG)”, no qual ela traz entrevistas com os signatários do Acordo e com representantes das comunidades atingidas.

O Acordo foi firmado em fevereiro de 2021 entre Vale e Poder Público no valor de R$37,69 bilhões, sem a participação das pessoas atingidas, nem das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs). Ele trata  da reparação dos danos coletivos e difusos causados pelo desastre-crime

A autora

Marina Oliveira é pesquisadora e atingida pelo desastre-crime. Foto: Arquivo pessoal

Marina, que sempre foi ativista pela igualdade social, conta que a causa socioambiental atravessou sua vida com o rompimento, em janeiro de 2019, quando ela passou a atuar, junto à paróquia de Belo Horizonte, com as comunidades atingidas de Brumadinho.

“A minha história se mistura muito com esse trabalho. Eu tive a oportunidade de apoiar diversas comunidades, como agricultores, familiares de vítimas, indígenas, comunidades urbanas e rurais, e acabei convivendo com uma diversidade de impactos e violações muito grandes. Para além de ser atingida, conviver com essas comunidades e essas violências foi o que mais marcou o meu jeito de enxergar a mineração predatória”, conta. 

Sua atuação contra a mineração predatória e a favor dos direitos socioambientais ganhou projeção com o trabalho da arquidiocese e, no ano passado, Marina sofreu diversas ameaças. Por recomendação de instituições internacionais, acabou deixando o país por alguns meses para garantir sua segurança. “Quando a gente está nessa luta, enfrenta grupos e setores econômicos muito poderosos historicamente. Esses grupos não querem perder os privilégios e querem continuar explorando. Especialmente quando se trata de grandes transnacionais e nas elites estatais, a gente acaba tendo reações muito desproporcionais, sobretudo em um contexto de muita polarização e violência política”, analisa. 

Lançamento “O preço de um crime socioambiental”

A obra será lançada no próximo dia 13, em um evento no campus Coração Eucarístico da PUC Minas, em Belo Horizonte. Diversas lideranças das comunidades atingidas, que participaram do processo de construção do livro, foram convidadas para o lançamento.

Confira a entrevista!

O que motivou você a estudar o Acordo como tema da sua dissertação?

Eu estava à frente da equipe da arquidiocese de Belo Horizonte e, desde que rompeu a barragem, comecei a atuar como voluntária apoiando as comunidades. Quando o Acordo foi firmado, eu fiquei muito indignada, porque ele ocorreu sem a participação das comunidades, foi de forma muito sigilosa. Eu conhecia muitas das demandas de reparação dessas comunidades e eu sabia que elas não tinham nada a ver com o que estava no texto.

Foi assim que nasceu o tema da pesquisa e as comunidades acabaram se envolvendo muito, porque elas também estavam muito indignadas com o jeito que estava sendo conduzido. A gente começou a pesquisar, entrevistar várias lideranças e comunidades, assim como as Instituições de Justiça [signatárias do Acordo – Ministério Público de Minas Gerais, Ministério Público Federal e Defensoria Pública de Minas Gerais], o governo do Estado e até a própria Vale. 

Se a gente não participou, eu queria investigar quais foram os atores que foram mais beneficiados, que tiveram as expectativas atendidas.

Você sempre fez parte do ativismo socioambiental?

Minha família é de Brumadinho, e se a gente fala que quase 300 pessoas morreram em uma população de 30 mil habitantes, isso é uma porcentagem muito alta. Todo mundo perdeu pessoas queridas e comigo não foi diferente, perdi amigos e familiares.

A minha história se mistura muito com esse trabalho. Eu tive a oportunidade de apoiar diversas comunidades, como agricultores, familiares de vítimas, indígenas, comunidades urbanas e rurais, e acabei convivendo com uma diversidade de impactos e violações muito grandes. Para além de ser atingida, conviver com essas comunidades e essas violências foi o que mais marcou o meu jeito de enxergar a mineração predatória. Foi uma coisa que veio com o rompimento. A gente vê nossos amigos, nossos vizinhos, lama por todo lado… acaba despertando e abrindo os olhos para essas questões.

Apesar de ser uma pessoa que já era ativista da luta contra as desigualdades sociais, a luta socioambiental não ocupava a centralidade que tem hoje na minha vida. Quando a gente faz a luta pela reparação integral e por justiça, ela começa local: a gente quer viver bem, viver feliz, ter comida de qualidade, poder trabalhar sem ser assassinado no trabalho, poder morar num lugar seguro, onde uma lama não vai atropelar a sua família. Com o passar do tempo,vemos que, na verdade, a gente é resultado de um modelo predatório de mineração e os inimigos são muito poderosos.

Estamos  imersos em um estado com histórico de minério-dependência muito grande, não é uma coisa simples romper com essa lógica e com esse medo de não ter emprego e desenvolvimento. Tem muita gente que acha que  lutamos contra o desenvolvimento, contra o emprego. Na verdade, somos contra as violações provocadas por esses empreendimentos. A gente quer emprego, mas a gente quer emprego com segurança, com qualidade.Não queremos ser reféns da mineração, queremos a diversificação da matriz econômica. 

O debate é muito complexo, fazer esse enfrentamento significa colocar o povo no centro da discussão. A mineração sem povo não serve pra nada. 

Como foi pesquisar um tema tão próximo a você? 

Muito difícil. A gente, enquanto atingido, é taxado como emocionado demais, louco, como se não tivesse condições de avaliar o processo a partir de critérios técnicos. Somos sempre colocados no lugar de que não somos capazes de entender e de participar. Lógico que é muito doloroso, é difícil separar quando você é objeto da pesquisa. 

Por isso, a metodologia passou por uma banca com vários professores. A gente se emociona, mas a nossa abordagem não é só fruto disso, é fruto de ciência, de metodologias de vários pesquisadores e de várias correntes teóricas. Isso é muito interessante, tentar fazer uma avaliação, sem descartar o processo doloroso que é, mas ao mesmo tempo categorizar e sistematizar essa dor, identificar o que explica aquela violência. 

O que você espera com o livro?

A mensagem que eu quero passar é, sobretudo, que das empresas não se pode esperar muita coisa. Elas são atores privados que estão buscando maximizar seu lucro, não há esperança de uma ação positiva por parte delas. Mas o Estado é diferente, ele deve defender o bem comum e o povo em primeiro lugar mas, muitas vezes, a gente percebe que o Estado se alia a essas empresas, com conexões e conluios para entregar as nossas riquezas, e é isso que a gente precisa combater. 

No caso do governo Zema foi isso que aconteceu: um Estado que se aliou à mineração, fazendo acordos a portas fechadas, e isso não aconteceu só no caso Brumadinho. Sempre na perspectiva de atropelar as comunidades em acordos que, na avaliação do governo, são rápidos e eficientes mas que, na verdade, são uma maquiagem e não garantem a responsabilização e nem que esses crimes não vão se repetir.

A mensagem principal é mostrar como autoridades do Executivo e do Legislativo precisam ter uma conduta em defesa do povo. Também é importante lembrar que o Estado não é um ente unitário, muitos setores  não concordaram com o modo como o Acordo foi conduzido. Eles tentaram interferir para que ele fosse menos violento, como a Defensoria Pública da União, que se retirou porque não concordava com a condução. Dentro das Instituições de Justiça, existem pessoas indicadas, mas também existem servidores que estão fazendo o enfrentamento pelas comunidades. 

Quando a gente joga tudo dentro da mesma cesta, corre o risco de jogar pessoas que estão tentando disputar as instituições de dentro do Estado e que, muitas vezes, perdem para o poder econômico e o sistema político. São pessoas aliadas do povo. O que a gente precisa é agradecer a essas pessoas para que, por mais que a gente não concorde com tudo,elas tenham forças no médio e longo prazo. Quem sabe a gente vira o jogo .

O objetivo é ter mais força dentro do Estado e fazer com que as mineradoras e os setores privados tenham menos força que o povo. Para isso, a gente tem que conquistar as pessoas que estão lá dentro. 

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