Conheça histórias de pessoas atingidas que lutam por justiça socioambiental 4 anos após o desastre-crime

Este 25 de janeiro de 2023 marcou os 1.461 dias do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. Por isso, na última quarta-feira (25), pessoas atingidas de diversos municípios mineiros participaram de mobilizações em Belo Horizonte,  na Faculdade de Direito da UFMG e no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), em busca por reparação integral e punição dos responsáveis pelo rompimento.

Diante das bruscas mudanças no cotidiano, comunidades ao longo da Bacia do Paraopeba e da represa de Três Marias tentam sobreviver em meio a contaminação do meio ambiente, da perda da fonte de renda, dos impactos nas saúde física e mental, do distanciamento de amigos e familiares diante de profundas alterações nos modos de vida, entre outros impactos.

Mesmo após quatro anos do rompimento, as pautas de luta dessas populações são pelo acesso a direitos básicos, que possam amenizar os danos sofridos cotidianamente. A região 5, por exemplo, ainda não foi incluída no Programa de Transferência de Renda (PTR); e o acesso a medidas emergenciais, como à água livre de contaminação para uso pessoal e para o cuidado com plantações e animais, também não foi garantido ao território. Além disso, as comunidades se reuniram em prol do Sistema de Participação, instrumento de reivindicação fundamental. 

A construção e existência do Sistema pretende dar autonomia e protagonismo às pessoas atingidas de toda a bacia nos espaços de decisão sobre o processo de reparação. 

Nas regiões 4 (Curvelo e Pompéu) e 5 (região da represa de Três Marias e comunidades do São Francisco localizadas nos municípios de São Gonçalo do Abaeté e Três Marias), o que une a população atingida são os sentimentos de indignação e esperança pela reparação integral. 

Luta por reparação une as comunidades

Pessoas atingidas das regiões 4 e 5 vivenciam histórias semelhantes de luta por reparação integral. As queixas mais frequentes se relacionam com impactos muito profundos nos modos de vida e na perda das principais fontes de renda. 

Diante de um desastre-crime tão grave, as consequências vivenciadas pelas comunidades se desenrolam como uma complexa cadeia de problemas: perda da fonte de renda, ausência de reparação integral somada à longa espera por direitos básicos são fatores que adoecem as famílias, assunto frequente nos relatos das pessoas atingidas. 

“Hoje eu não tenho mais as minhas galinhas, meus porcos. Antes eu tirava óleo de pequi, fazia conserva de broto de bambu. Hoje eu não tenho mais isso na minha vida. Perdi minha renda por completo por causa da Vale. Queremos a nossa reparação individual não para amanhã, mas para ontem. Voltar a ter o mínimo de dignidade é obrigação da Vale”

Rosângela Maria, moradora da comunidade de Angueretá, em Curvelo.

“Com esse rompimento da Vale, contaminou tudo, os peixes sumiram. Meus filhos tiveram que ir para Belo Horizonte para trabalhar com o que acharam. A Vale tirou nossa perspectiva de futuro, nossos sonhos. Nossa alimentação era muito melhor, nossa vida também. Almoçamos o pouco que conseguimos plantar porque o solo ficou completamente infértil, basicamente o que brota é mamão. Nossa alimentação é arroz, feijão, angu e mamão refogado. Antes nós comíamos peixe todos os dias, comíamos muita verdura, vendíamos bastante peixe, nossa alimentação e nossa qualidade de vida era outra”.

Quesia dos Santos, moradora da Fazenda Diamante, comunidade de Pompéu.

“Tudo isso que vem acontecendo causa uma neura, um sentimento contínuo de preocupação, de tensão. Tivemos que parar com as nossas atividades econômicas na minha região, uma localidade que tem uma diversidade muito grande, tudo utilizando o rio e a terra. É tão grave que eu não tomo a água do meu poço artesiano, eu compro água mineral. Essa água para consumo nós compramos do próprio bolso. Por isso lutamos para que a área 5 seja reconhecida em sua totalidade”

Tarcílio de Almeida, morador de São Gonçalo do Abaeté.

“Estamos fazendo um apelo para a justiça olhar para toda a Bacia do Paraopeba, que está sendo prejudicada pela Vale. A empresa não matou apenas 272 pessoas, tem muita gente adoecendo e morrendo. Não acontece nenhuma assistência por parte da Vale, principalmente na área da saúde. Tem muita gente estressada, deprimida, sem alegria de viver. A população não tem como tirar o sustento, há um povo que não tem como mudar de profissão de uma hora para a outra.”

Ormindo de Brito, São José do Buriti, em Felixlândia

“O juiz ficou muito impactado com os relatos, e foi só uma prévia do que a gente passa nos territórios. Só o pouco ele já ficou estarrecido, imagina se ele for a campo ver o que a gente está passando. Ele falou que vai ficar uma semana sem dormir processando tudo que ouviu, eu vou passar uma semana sem dormir eufórica na esperança da reparação. O sentimento é que a justiça será feita contra a Vale”. 

Liderjane Gomes, da comunidade indígena Kaxixó, em Martinho Campos 

Histórias de luto e luta por justiça

O dia a dia de Rosângela Maria, moradora da comunidade de Angueretá, em Curvelo, era voltado para a criação de pequenos animais e para os cuidados com as plantações, hoje é determinado pela perda das principais fontes de renda e pelo sentimento de injustiça. 

A impossibilidade de utilizar a terra para plantação e criação dos animais impactou, também, nos laços da família de Rosângela, que trabalhava ao lado das filhas na colheita e produção de doces de pequi. Depois do rompimento, as filhas ficaram sem opção de renda e tiveram que deixar o lugar onde viviam o em busca de emprego. 

Rosângela Maria, moradora de Angueretá, em Curvelo. Foto: Fabiano Lana/Instituto Guaicuy.

De família de pescadores, Quésia dos Santos, o marido e os quatro filhos são de Fazenda Diamante, comunidade de Pompéu. Diante da alteração da água, com presença já identificada de metais, e diminuição da quantidade de peixes, os dois filhos mais velhos precisam sair da localidade em busca de trabalho. “O que eu, meu marido e meus filhos sempre soubemos fazer é pescar. Tínhamos uma vida muito próspera, até 2019. Dois dos meus filhos estão longe de mim porque já não tinha trabalho para eles. Outros dois estão comigo, mas sem perspectiva de futuro. Um deles, inclusive, reprovou em uma disciplina na escola chamada ‘projetos de vida”, desabafa. 

A distância dos filhos, a perda da principal fonte de renda, a convivência com as alterações no meio ambiente, somada à ausência de reparação integral, causaram uma piora na qualidade de vida Quésia, o que também pode ser facilmente identificado em outras famílias e comunidades ao longo da bacia: “A gente não quer nada mais do que aquilo que nos foi tirado. Não temos mais saúde mental, perspectiva de futuro, alegria de trabalhar, plantar. Isso não é possível devolver, a gente sabe. Eu não tomava antidepressivo, ansiolítico, desenvolvi diabetes depois do alto consumo de arroz e macarrão, já que não comemos mais tanto peixe. A gente quer nossa qualidade de vida de volta para podermos seguir a vida em paz”. 

Há nove anos, Ormindo de Brito, junto da família, se mudou para São José do Buriti, município de Felixlândia,  com o intuito de viver a velhice na tranquilidade da comunidade. Atuando no ramo da hotelaria, o morador viu a localidade ser profundamente impactada pelas consequências do rompimento em Brumadinho: “O crime da Vale interrompeu o desenvolvimento do nosso município. Muitas pessoas adoeceram e morreram aguardando uma solução. Não recebemos nem o PTR, nem ressarcimento do prejuízo.” 

Ormindo de Brito, São José do Buriti, em Felixlândia. Foto: Fabiano Lana/Instituto Guaicuy.

Para o morador, a presença em mobilizações, como a ocorrida na frente do Tribunal de Justiça, em Belo Horizonte, é importante para impedir que o desastre-crime seja esquecido e, principalmente, pressionar as instituições para que a reparação aconteça de maneira mais rápida: “Vamos participar sempre de reuniões buscando reparação, exigindo que a indenização aconteça mais rápido. O nosso município foi muito desvalorizado, está sofrendo muito. As vendas de peixe, toda a rica produção do município foi interrompida. Assim não tem como ninguém sobreviver”. 

Lindomar Alves, morador de Morada Nova de Minas. Foto: Fabiano Lana/Instituto Guaicuy.

Pescador profissional, Lindomar Gonçalves vivia unicamente da venda do pescado em Morada Nova de Minas. No dia 25 de janeiro de 2023, também estava reunido em Belo Horizonte, junto a outras pessoas atingidas do Rio Doce e da Bacia do Paraopeba, para reivindicar a reparação integral. 

O sentimento de insegurança com a possibilidade de contaminação dos peixes por metais pesados afetou profundamente a economia da localidade e Lindomar precisou se desfazer de instrumentos de trabalho para conseguir sobreviver: “Tive que vender barco e motor porque não tinha como pagar as minhas contas. Vendi meu rancho e voltei para a cidade porque eu e minha esposa não tínhamos como nos manter. Hoje estou tentando voltar a trabalhar com peixe, mesmo assim não está dando, tá tudo muito mudado.”

Tarcílio de Almeida é morador da comunidade Fazenda Morada dos Peixes, em São Gonçalo do Abaeté, e compartilha da realidade vivenciada por Rosângela e Quésia. “Tenho uma pousada junto da minha família e trabalho há muitos anos com hotelaria. Na minha região existe uma atividade muito diversificada, com criação de tilápias, agricultores e apicultores. A comunidade foi atingida de uma forma muito grave, ficamos todos muito preocupados com a notícia da chegada da lama. Perdi todas as reservas da minha pousada e a compra dos pescados da região foram todas pausadas”, relata.

Tarcílio de Almeida, morador de São Gonçalo do Abaeté. Foto: Fabiano Lana/Instituto Guaicuy.

A preocupação se estendeu a todas as cadeias econômicas da comunidade, que até hoje buscam por reconhecimento enquanto atingidos para garantia de direitos, como o acesso ao Programa de Transferência de Renda e à água potável. 

O desgaste emocional é outro fator recorrente na localidade e o adoecimento físico e mental também é identificado entre os moradores: “Eu mesmo fui uma vítima disso. Vivemos o dilema de ter que pagar conta e não ter com o que pagar. Por isso o dia de hoje é de luta para a região 5 ser reconhecida, estamos pedindo nossa dignidade de volta”, desabafa.

Junto às pessoas atingidas das regiões 4 e 5, a presença nos atos do dia 25, para Tarcílio, representa a luta por reconhecimento da região 5 enquanto atingida: “Infelizmente nós fomos atingidos, meses depois, por estarmos na calha do São Francisco, fomos os últimos a ser afetados pela lama. Querendo ou não, a Vale e a justiça terão que nos reconhecer como atingidos. O rio não para na represa, o rio segue. Temos 20 quilômetros de calha de rio em que estão os municípios de Três Marias e São Gonçalos, e não fomos reconhecidos pelo Anexo 1.2, nem pelo Anexo 1.3”.

Impactos se estendem para além do Rio Paraopeba 

As memórias do acesso ao rio para as atividades econômicas, religiosas e de lazer ainda estão nítidas para Liderjane Gomes, moradora da comunidade indígena Kaxixó, no município de Martinho Campos. 

Banhada pelo rio Pará, a localidade vem vivenciando alterações: diante do sumiço dos peixes no rio Paraopeba, muitos pescadores migraram para o Pará: “A gente entende porque os pescadores precisam trabalhar. Mas com o desastre-crime da Vale, essa migração sobrecarregou o rio Pará. Quando vamos nadar no rio, nossos filhos não podem fazer barulho senão espantam os peixes e a vazão também mudou muito, está bem menor. 

Os nossos filhos tem que ir mais pro meio do rio pra nadar e passam muitas canoas de motor, é perigoso acontecer algum acidente. Sem contar que os fazendeiros do entorno trancaram as estradas com corrente, o que dificulta o nosso acesso”, relata. 

Liderjane Gomes, da comunidade indígena Kaxixó, em Martinho Campos. Foto: Fabiano Lana/Instituto Guaicuy.

Com as alterações no cotidiano, principalmente das que envolvem as vivências no rio Pará, Liderjane comenta que os moradores da comunidade estão mais preocupados e ansiosos. Para os Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), como os indígenas Kaxixó, a relação com a natureza está intimamente relacionada com a identidade e ancestralidade do grupo. 

As águas de um rio, por exemplo, significam a relação com o passado, o presente e o futuro, a conexão com os ancestrais e os guias. A alteração no acesso ao rio Pará é como a morte de um parente: “O Paraopeba foi atingido com rejeito, o Pará com a sobrecarga dos que não conseguem mais utilizar o Paraopeba. Esse é o nosso tipo de sofrimento. Não desmerecendo as dores das 272 mortes, mas é uma dor ficar sem o nosso rio, sem poder pescar, nadar, fazer ritual, não poder usar nosso rio para nada. Isso também é um tipo de morte para a gente, é uma dor imensurável”, afirma. 

No ato em Belo Horizonte, no Fórum Cívil e Fazendário, Liderjane integrou uma comissão de pessoas atingidas, Assessorias Técnicas Independentes e representantes de movimentos sociais que se reuniram com o Excelentíssimo Senhor Dr. Murilo Silvio de Abreu, da 2ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte. 

Foram debatidos os rumos do processo judicial e reivindicado pelas pessoas atingidas o reconhecimento das regiões enquanto atingidas, a necessidade de reparação individual, a integralidade do Programa de Transferência de Renda (PTR) e o acesso à água: “Na área 5, fomos os últimos a sermos aceitos como atingidos. A minha comunidade, os Kaxixó, tem o prazer de ser o primeiro da área 5 a ser reconhecida, mas não ficamos felizes com isso. Toda a área tem direito ao PTR e à indenização. Não é só os Kaxixó que quer a reparação integral, é um direito também de toda a Bacia, e a nossa luta é para isso”, finaliza Liderjane.

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